Mnemonicide


Olha-me nos olhos e diz-me que o sangue que corre da ferida que deixaste aberta não é suficiente para matar a sede das memórias que deixaste congeladas dentro de mim, diz-me que o fogo em que faço este corpo arder não é capaz de aumentar a temperatura a que a tua herança bate e que não foi na insana mistura de sangue, gelo e metal que encontrámos a cura ainda que temporária para o mal que consumia os núcleos negros das nossas almas.
Se reinventar o tempo em que estávamos juntos já não chega para fazer o pulsar inútil do núcleo ígneo parar, peço-te então que me devolvas ao estado em que me encontraste e que apagues a dor de não poder existir sem ti ainda que me faças esquecer-te. Sim, esquecer-te…
Porquê alimentar um monstro que irá inevitavelmente destruir-me e lançar a minha alma de novo ao nada, não será mais fácil abandonar-te à solidão que decidiste abraçar em vez de carregar uma dor sem razão para existir? Não seria mais fácil destruir-te de forma tão bela e suave que tu mesma implorarias pelo fim? Não será mais fácil mentir à minha alma e dizer-lhe que o que ainda sinto por ti não passam de restos de gelo e veneno que ainda persistem agarrados ao cerne da minha alma? Claro. Claro que seria mais fácil, claro que desistir de sentir é sempre mais fácil, e destruir algo que ainda fará parte de mim muito depois dos ciclos temporais se esgotarem seria mais fácil ainda. Mas já não tenho força, nem força nem vontade suficiente para voltar atrás e desfazer as armadilhas do tempo, nem força nem vontade de esquecer que foste tu que me arrancaste a ultima máscara e libertaste a face gentil ainda que mortífera da besta dentro de mim. Foste tu que limpaste o rasto de sangue da minha alma e sem medo mergulhaste no inferno no qual me escondi para trazeres este velho cão sem abrigo de volta à vida e aos teus sonhos. Foste tu que libertaste as sombras que eu acorrentei para não me atormentarem e a seguir me explicaste como sentias parte de mim em cada uma delas e por isso te dei o sangue metálico que ainda não sabia ser amaldiçoado nem pulsar sempre em sincronia com uma morte que só muito mais tarde me irias forçar a provar.
Sim irei esquecer-te, deixar-te-ei cair docemente inanimada, mas só muito depois de alcançar o vazio da completa inexistência e de tu me perdoares a incapacidade de te trazer de volta à inocência, de arrancar de ti a mancha de sangue e lágrimas que deixei na tua alma.

Comentários

  1. Soberbo lirismo. O estilo faz-me lembrar os livros policias negros envoltos em misticismo e vampirismo. O primeiro parágrafo é digno de várias leitura. Eu demoraria uma eternidade para a construir. Parece-me que em ti é natural.

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