Requiem M II

Acordo no dia que reflecte apenas a ausência para voltar a dormir num tempo futuro em que esqueço que foi da negação dos instintos que nasceu o princípio destas linhas que agora escrevo.
Não, estou apenas a enganar-me a mim próprio. Desde sempre senti a falha que deixei, talvez de propósito, na impenetrável armadura que moldei em torno deste destroço ou imitação de coração que carrego. Camada atrás de camada, gelo, metal e espinhos. Impenetrável. A fortaleza perfeita. Mas tal como qualquer fortaleza precisava de água. Sangue. A imperfeição. A única falha. A brecha pela qual te permiti a entrada. Digo permiti mas em mim concebo tudo de maneira diferente…
Já existias no sangue que corria em mim muito antes de eu suspeitar sequer da tua existência. Não acreditas? Não achas que algo assim pode existir ainda antes de algo ou alguém ter consciência dessa existência?
Sempre soubeste tudo sobre o nada e no entanto desconhecias os segredos conjugados no tempo passado.
Uma das tuas falhas. Não mergulhaste no passado, querias apenas chegar o mais depressa possível ao futuro, e nessa pressa não viste que eu já não tinha um coração a bater com força suficiente para espalhar o veneno dos teus beijos pelo meu corpo.
Mas sem que eu suspeitasse, algo mais corria novamente em mim. Depois de muito tempo adormecidas, as chamas da Fénix Negra voltavam a reacender-se. O Núcleo Ígneo criado para me proteger despertou violentamente e pedia-me mais de ti enquanto esquecia que me devia proteger.
Deixado à mercê dos ataques impulsivos desta paixão incontrolável, todas as chagas voltaram a reabrir-se, à pressa de encerrar novamente o sentir, o sangue voltava a correr e através dele o veneno que tanto quiseste dar-me e eu cada vez a sentir mais perto a única verdadeira hipótese de salvação que jamais tive.
Salvação… Parece-me agora apenas uma palavra vazia, um conceito tão distante. Foi para te proteger, vejo agora, que fiz contigo o que fiz a todos os que se atreveram a ver por detrás dos meus olhos, é certo que nunca ninguém me tinha visto como tu e era apenas perto de ti que me encontrava desprovido de todo o mal da minha alma, mas eu não podia deixar de cumprir o que te prometi. Eu que sempre quis que te tornasses mais forte, que prometi proteger-te dos abutres, na minha arrogância julguei que seria sempre incapaz de te magoar. É ridículo eu sei, ridículo que alguém que carregava um monstro dentro de si tenha acreditado que alguém podia chegar a perdoar-me essa falha e ver para além disso, e ainda se torna mais ridículo quando esse alguém era tão igual a mim e por isso compreendo demasiado bem o que significou veres-me ser apenas mais um idiota (um abutre se preferires), acho que ainda assim talvez pudesse continuar a existir em ti, talvez me pudesses “perdoar”, se ao menos eu não me tivesse atrevido a tocar tão fundo na tua alma, podias perdoar a todos menos aquele que visse mais do que era suposto.
Acredita que tentei, tentei quebrar tudo o que me ligasse a ti, todos os limites, disse-te que acabava sempre por me afastar de tudo, e sempre fui assim, sempre desapareci das vidas que já não me interessavam sem deixar nenhuma marca que pudesse denunciar que outrora tinha existido. Então porque te disse que não queria cortar os cordéis mas sim embrenhar-me neles até ser incapaz de o fazer? Pela mesma razão pela qual te dei o Núcleo Ígneo. Pela mesma razão pela qual sempre fiz tudo o que realmente me importava.
É estranho, acelerei os ciclos do tempo, mudei o passar dos dias à minha maneira, fiz nascer de novo as asas e sarei todas as cicatrizes, destruí tudo à minha volta, criei turbilhões de chamas no meio de gelo, trouxe de volta o renascer da Fénix Negra, e nada apagou o que guardo de ti, nem mesmo o Anjo Negro, o “teu” Dark Angel, foi capaz de se libertar do que quer que seja (desisti de arranjar nomes para este subtil sentir) que ainda me liga a ti.
Queria não ser homem, monstro ou puto, queria ser Oberon, cavaleiro nocturno, e sob as minhas asas negras eliminar a beleza e o passado; queria correr para uma alvorada perpétua com uma velocidade e uma implacabilidade que não deixassem lugar a remorsos ou arrependimentos.
Posso estar apenas a fraquejar, mas talvez esta seja uma das alturas em que a minha essência se torna tão etérea que pode ser soprada pela fria brisa da noite até ti, e então estarei de certeza ao teu lado, a velar pelos teus sonhos.
Sinto que já disse milhares de coisas e no entanto ainda não te disse nada sobre mim e escrevi ainda menos algo que te possa mudar. Não sei, é apenas um desordenado debitar de palavras onde podem ser confundidas as suaves matizes que me debruam a alma, nunca soube verdadeiramente qual era a utilidade das palavras que escrevo, sei o que queria dizer com estas mas creio que se escrevesse vários volumes ainda assim não estaria mais perto de o dizer e se não o faço agora é apenas porque a velha Lua chama por mim com toda a sua força. Ainda assim desculpa-me, desculpa-me pelo lavar de merdas que (ainda) mexem com a minha alma.
Dorme bem miúda, tem cuidado com os abutres.

Comentários