Raiva

Outra vez.
E outra, e outra...
Sangue empurrado contra a torrente de pensamentos calcinados pelas chamas da raiva. Sentimentos desprovidos de qualquer vestígio de bondade, qualquer réstia de bem.
Raiva imutável e incapacitante negando tudo o que tu tinhas construído dentro do meu coração agora sem vida, a calma, a razão, o bater descompassado em sincronia com o teu, a imortalidade dos grandes e perfeitos sentimentos, tudo negado, tudo destruído pela mediocridade humana que nunca existiu dentro de nós. A mudança de todas as constantes sem recurso a simplificações, apenas eliminações irracionais de núcleos de fogo e penas vazios de qualquer significado coerente com e enegrecimento da alma no passar deste ciclo fechado aos desígnios herméticos do tempo lunar. Não existir um caminho para ti, não sentir as minhas asas enroscadas nas tuas empurradas pelo vento do Inverno, assistir ao desfalecimento da minha alma sem que gelo ou metal pudessem algo contra, sem poder voltar a sentir o gosto amargo dos teus lábios, mas que tipo totalmente surrealista de morte maldita é esta?
Devia tornar-me um vulto indistinto por entre os inconscientes mortais? Não, os laços de sangue amaldiçoado quebraram-se ante a raiva cega da incomensurável dor, neste ciclo de tempo sou de novo senhor de mim, sou de novo aquele de quem os Arcanjos fogem ao ouvir pronunciar o meu nome proibido, aquele de quem Deus se esconde temendo uma das suas antigas criações...não, eu não fui uma das suas criações, eu nasci também desta raiva embora o meu corpo pertença a esse senhor de fantoches idílicos sim, mas ele já não o controlava muito antes da verdadeira luz morrer naquele cemitério sombrio.
Tu e a Raiva, a Raiva e Tu; os juramentos do sangue esquecidos por entre os laços aparentemente inquebráveis que nos uniam por entre todo o ódio que carregava-mos nas nossas asas e nas nossas espadas amaldiçoadas, armas de destruição que já não podiam matar mas que ainda voltarão a saciar a sua sede de sangue.
A Raiva e Eu, Eu e a Raiva; alimento inesgotável das almas destruídas, combustível dos fracos e capricho dos poderosos, penas enegrecidas das minhas asas, novo órgão num corpo mutilado pelo saber de outrora, pelo amor de agora, pelo ódio de amanhã e sobretudo pela tua inconcebível morte, um corpo agora com dois corações.
O primeiro, sombra e destroço do que foi o original, o núcleo ácido da eterna paixão que não podia existir.
O segundo, chama ardente que herdei de ti quando te dei as minhas asas inúteis, a única parte de mim que continuava viva.
Irónico, antes dependia de um para continuar a gozar do ácido que me preenchia as veias, agora nenhum dos dois tem qualquer influência sobre mim. Não dependo deste corpo para sobreviver mas continuo a depender do sangue onde a tua morte se dissolve lentamente para que eu possa continuar nesta morte consciente.
Durante mil anos nada mais me importou, era a tua simples (?) existência que comandava todas as partículas de gelo que me corriam sem destino na alma, toda a vida à nossa volta, as marés, a rotação da Terra e os movimentos telúricos não passavam de reflexos inerentes a nós, o próprio Tempo curvava-se ante a nossa selvagem distorção das leis e regras divinas. Mas tudo acabou e agora vergo-me sob o jugo do tempo embora a imortalidade corra em mim como um rio sem represas nem entraves ao seu curso. Também aqui nos enganámos, como se não bastasse ter-mos ido contra o destino inegável, ainda pensámos que a imortalidade era nunca morrer.
Não posso continuar sem ti, sem o teu sorriso quando voávamos sobre a lua, sem o doce cheiro do teu cabelo negro, sem as tuas unhas cravadas na minha carne deixando-me nos limites da sanidade, sem o teu perfume vermelho a despertar-me os sentidos e não o sabor de morte e flores que me ficou nos lábios quando te beijei pela ultima vez.
Lembras-te quando nos conhece-mos neste lugar maldito e grava-mos o nosso amor naquela espécie de metal sanguíneo?
Se ao menos te pudesses erguer da tua sepultura, voltar aqui, e dizer-me que ainda me amas...

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