Acordar Do Sonho

Já é de manhã?
A luz forte que entra pela janela aberta fere-me os olhos mas ainda assim não os fecho, mantenho-me perigosamente no limiar da cegueira apenas porque teimo em desvendar os segredos que este acordar pretende ocultar aos passos que dei durante a noite e durante o sono. O tempo passa e continuo firmemente agarrado ao fragmento de esperança que ainda posso sentir a bater por entre os destroços firmemente agarrados aos espinhos, o teu legado de morte e sangue amaldiçoado ainda a alimentar-me os instintos mais profundos como se por algum distorcido caminho através dos véus do tempo a tua voz ainda me disse-se para continuar a sobreviver-te, como se um fantasma de ti ou um reflexo do teu corpo pousasse as mãos nas minhas costas e me reabrisse as cicatrizes libertando toda a insanidade que o teu último beijo ainda carrega.
Fecho os olhos, amaldiçoo todos os deuses que conheço e agradeço-te em surdina que continues comigo. Afinal sempre corrias em mim com a mesma força que eu em ti.      Queria continuar deitado nesta cama que era nossa mas o reflexo que vejo no espelho estilhaçado lembra-me que não posso parar, não posso deixar tempo às memórias para que se tornem apenas nisso, memórias, pequenos pedaços de ti que iriam começar a dissolver-se nas fendas do tempo até deixarem de existir em mim.
 Não posso, tenho que me erguer mais um dia e sair do nosso paraíso utópico para lentamente matar a realidade, pouco a pouco, cortar cada um dos cordéis que me prendem a ela e aprender a voar sem asas, saber de novo qual é o sabor da queda, traçar um horizonte em que o sol não se ergue quando a lua mergulha no mar, apagar o passado como as ondas apagam as pegadas deixadas na areia, deixar o vento empurrar-me os sonhos para longe até os perder por completo nas nuvens negras que vejo no horizonte, arrancar tudo o que resta de ti na minha carne e deitar-me inanimado sobre o leito de orquídeas sob o qual se esconde o que resta do teu corpo.
Vou acordar.
Vou acordar em mais um fragmento de realidade porque ela já não existe em si mesma, mas apenas com os fragmentos dispersos pelo vazio da tua ausência. Vou levantar-me desta cama de memórias e sangue e caminhar em direcção ao anoitecer onde todas estas palavras são o contrário do que dizem e ao mesmo tempo exactamente o que são sem terem qualquer significado.
Vou adormecer novamente sem tirar as conclusões que queria desta vida emprestada que me deste pois não posso tirar de mim uma única memória de ti que não me faça lançar-me pela noite numa busca incessante de raios de luar prateados, cordéis que me deixem puxar a lua para cima da terra morta até que a colisão faça morrer tudo o que sonhámos e tudo o que nos destruiu.
Mas tudo são apenas sonhos. Na triste realidade levanto-me e já não restam lágrimas, o espelho da alma continua transformado em cacos rachados uniforme ou caoticamente conforme a memória que representam, peças soltas por onde a matiz de cores da realidade foge deixando apenas os reflexos negros de mim.

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