Sonhar (Parte V)

Estou em pulgas, pareço uma criança na manhã de natal, a antecipação está a dar cabo de mim. Os pneus do meu velho companheiro chiam ao sair do estacionamento e nem a cara de medo que ela faz me desvia do caminho.
Só agora que junto as peças do puzzle das nossas vidas me lembro, sempre odiaste velocidades elevadas, pelo menos em carros porque à medida que me seguias nos meus voos nocturnos, aprendias a voar cada vez mais depressa. À força de me controlar e manter-me calmo, gélido, nem reparo que ela ligou o rádio e procura agora um sentido na música que tem o seu nome. Nunca conseguiu compreendê-la, para ela as lágrimas e as ondas não faziam sentido, muito menos a morte à qual julgava ser imune, mas como tantas outras coisas sabia bem demais em que cordas da sua alma vibrava cada um daqueles acordes. Chegamos. Paro o carro e desligo as luzes. O fumo do cigarro dela demora a confundir-se no ar descrevendo espirais e enleados retorcidos como letras escritas por uma mão trémula. Por momentos esqueço tudo à minha volta e ouço apenas o rebentar das ondas em baixo. Sou incapaz de ligar a lógica do raciocínio ao tempo e não fosse o riscar insistente do isqueiro dela, podia facilmente permanecer ali até que o meu corpo desistisse de suportar o vento. Olho para trás e vejo-a deitada sobre o capot a olhar para a lua. Vou à mala buscar a manta, tranco o carro, pego-lhe na mão e arrasto-a pela encosta abaixo por entre as árvores teimosamente agarradas às rochas.
Não sei se é pelo ângulo perfeito que a lua forma na superfície da água ou se os meus olhos já estão tão habituados à escuridão que cada fino fio de luz que se desprende do céu brilha com a intensidade de milhares de estrelas; mas por alguma razão estou consciente de cada suave entoação das ondas do mar, percebo até o mais ínfimo agitar de folhas ou o pequeno grão de areia deslocado pelo vento e por isso as unhas dela cravadas na minha carne causam um efeito enlouquecedor. As pegadas que deixei horas antes ainda são perceptíveis de ponta a ponta da praia. Ela deita-se na areia e puxa-me a manta das mãos. Frio, preciso de mais frio. Rapidamente dispo-me e mergulho no negro do mar. A água gelada torna-se em punhais que me acariciam o corpo.
Saio renovado da ondas e sacudo-me como um cão. Ela olha para mim como se até hoje nunca o tivesse feito a sério. Sento-me ao seu lado e espero. Um ultimo acto de defiance.(Continua)

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