Sonhar (Parte VI)

Um ultimo acto de defiance.
Espero que ela faça as perguntas certas em vez de lhe dar as respostas. Deixo que o meu veneno a torture antes de tocar a doce melodia que lhe irá adormecer os sentidos. O silêncio estende-se pela noite e sei que é apenas o barulho das ondas que os mantém acordados. Deixo que o tempo se perca nas suas intermináveis voltas até que finalmente ela me olha nos olhos e pede-me que não fale, que escute até fim antes de sentenciar o final desta noite. “Estás a mudar mais uma vez não estás? Não, não respondas, o afastamento silencioso, as chamas por detrás dos teus olhos cada vez mais apagadas a darem lugar aos olhos de cachorrinho abandonado… Eu nunca te menti, sabias que eu podia partir a qualquer momento. Eu sei, mas pensei que depois de tudo, o tempo ia acabar por te fazer acalmar. Eu… Não meu anjo, não me peças desculpa, não foi isso que me ensinaste? A voar sem olhar para trás? Sempre… Então não te preocupes porque nisso já sou como tu, sobrevivo a tudo.”
Vejo as lágrimas que teimam em não abandonar os seus olhos. “Posso dormir encostada a ti? Pela ultima vez?” Estendo o meu braço (asa) esquerdo sobre ela. “Alguma vez tiveste que perguntar?” Como uma pena a pousar sobre uma ferida que se recusa a fechar, sinto-a encostar-se a mim e fechar os olhos. O cheiro da sua pele, a doce perfeição marmórea da face semi-oculta no cabelo que ainda guarda o aroma do pecado, da insanidade sob a forma desta Mulher-Demónio. Mas tudo em mim são chamas agora e a promessa da vertigem do corpo não faz mudar o turbilhão de intensidade nem pára o voo do pássaro das trevas. “Só gostava de saber uma coisa. Encontraste o teu fragmento perdido? É por isso que vais partir?” Os olhos dela oscilam entre as lágrimas e as chamas mas o olhar não é nem será mais o de pobre cadelinha abandonada que conheci. “Não” – respondo por fim – “mas sei que de alguma forma estou cada vez mais perto e por isso tenho que voltar a ser um só de novo. Tenho que… regressar à inocência. À inocência?” A incredulidade estampada na face dela não me faz hesitar. “Sim à inocência, à inocência de mim próprio e dos sentimentos. Ao contrário do que aconteceu com o outro fragmento de mim, eu não sonhei contigo; sonhei-te. Consegues compreender a diferença? A suave nuance entre criar e amar?”
Os primeiros raios de sol tocam as ondas. “Há muito tempo que não via-mos o nascer do sol juntos. Não estás a ficar melancólica pois não? Não meu anjo, e acredita quando te digo que entendo, é então a infame Fénix de asas como as dos corvos. Talvez, ainda é demasiado cedo para antever as consequências.” Os lábios dela tentam reprimir um bocejo. “Dorme ma petite, vais ver que os sonhos te vão dar algum sossego. Promete-me uma coisa Gonçalo, promete-me que ainda vais estar aqui quando eu acordar para me lembrares que afinal não foi um sonho. Descansa, ainda não é hoje que te vou deixar sozinha.” Lentamente ela fecha os olhos, cansada, e sinto-a deslizar para o reino de Hypnos.
BZZZZZZZZZZZZZZ(Continua)

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